Cartas do Tojal


Caríssimos

Apreciei muito a minha ida a Alqueidão da Serra, no último domingo, 12 de Agosto, para assistir à inauguração da “exposição de burros” que a D. Adelaide, uma gentil senhora da terra, residente em Lisboa achou por bem coleccionar e oferecer à Junta de Freguesia. Belo gesto de quem muito preza a sua terra. Gratos lhe somos.

Isabel – Filha da Benfeitora

Admirei alguns belos exemplares de “burros” que tive o prazer de vos enviar, via e-mail. Mas mais do que os “burros”, gostei de cumprimentar pessoas que não via há muito tempo: A Adelaide, o marido Cordovil e o irmão dela, filho do Carlos” Couceira”; a Ninita e a filha Ana, que vira no Tojal, o Clóvis, o Jacob e a esposa, filha do ti Jacinto, a irmã do Jacob, a Purificação, filha do Ti António Amado, o professor Carlos, a Lhuca e filhos João e Dulce, a Júlia Zambujeiro e tantos outros que não menciono para não excluir alguém.

Presidente da Junta de Freguesia

Depois de regressar a casa, vieram-me à mente as palavras do Eng. Filipe, Presidente da Junta referindo que o burro não está em vias de extinção, pois o cadastro da Junta elenca cinco burros, existentes na área da freguesia: Alqueidão, Casais e Serra.

Volvidos sessenta anos, regressei ao dia 8 de Setembro de 1958 quando, a pé, fui aos Bouceiros celebrar a missa da festa de Nossa Senhora da Saúde, e, em cerca de quarenta minutos contei, desde o Alto da Carreirancha até ao Vale de Ourém, 112 (cento e doze) burros, ajoujados às cargas de milho, ajeitadas aos pendentes ceirões.

E questionei-me: Nessa data quantos burros haveria, no Alqueidão? Daqui lanço um pedido aos ilustres investigadores históricos do Alqueidão: me digam quantos burros haveria em 1958. Ao licenciado Dr. Paulo Correia Matos solicito pergunte a sua mãe, Ascensão, lhe forneça um cálculo aproximado e consulte o seu primo Fernando Silva Matos (Fernando Sarmento) para se inteirar com sua mãe, do Pelingrim, sobre as existências asininas da ocasião.

Ao licenciado, Dr. Carlos Alberto Rosa Vieira peço contacte o ti António da Laura da Carreirancha que, no princípio da década de 1960, era o presidente da Junta inquirindo se, à data, ele fez o cadastro dos burros existentes no Alqueidão e aborde o Daniel de São João Correia, viúvo da Celeste Frazão, que tive a dita de com ele sorrir, no peristilo da exposição, se ele tem conhecimento de que o seu pai Francisco Correia, que, ao tempo era o regedor da Freguesia, possuía o catálogo numérico.

À Dulce Gabriel nada peço, pois quando este receber já estará a actualizar o seu blogue…

Quanto a mim, mentalmente, peregrinei desde a casa do ti Adelino Crenco, do Fundo do Lugar, até à casa do ti Bernardino, do Alto da Carreirancha e já fiz o meu cômputo asinário.

Falei da existência de burros no Alqueidão, porque no meu tempo, a Freguesia tinha três departamentos: o Alqueidão, os Casais e a Serra.

O Alqueidão seria, no imaginário de Eça de Queirós em a Cidade e as Serras, a cidade, onde, algures, no 202 duma rua de Paris, o supercivilizado Jacinto se atolava na Várzea da

No Porto de Xangai

cultura e encaixotava bibliotecas de iluminação; a Serra, do outro lado do Vale de Ourém, ao contrário, seria a aldeia sertaneja de Tormes, onde vegetavam estéreis ameixoeiras e raquíticas estevas e se comiam favas cozidas em banha de toucinho, ou, tansmutando-se para o seu Mandarim, o Alqueidão seria Xangai, onde dom Teodoro enobrecia Sheratons que desafiavam alturas e inchavam portos e, ao contrário, no porto de Xangai a Serra, seria a pobre dona Augusta que varria jardins de alamedas mal alinhadas e limpava tanques pútridos de encharcados nenúfares.

Que os seus habitantes de então me relevem estas alegorias, algo hiperbólicas. No entanto, estes tão simpáticos animais que tinham o condão de ser serviçais e aptos para toda a arte de bem servir e melhor cavalgar tinham as suas manias e aleivosias.

O ti Francisco Gabriel, pai do Euclides, do Teodoro e da Ninita que também tinha burros, certo dia alterou-se com um deles e sorridente, segredou-me:

“Consta que Job era santo por ter muita paciência, mas não consta da Bíblia que ele tivesse burros!”

A ti Rosa, de saudosa memória, mãe do professor Carlos, minha vizinha, que nesta questão de burros não era muito meiga, em certa ocasião, desancou sobre um, uma estridente gritaria e ele tributou-lhe uma generosa dentada no braço. Eu, movido de compaixão, do patamar do alpendre da minha casa, ria… ria… ria…

Mas nem todos primavam pela boçalidade porque alguns possuíam sortilégios de bonomia. 

Em fotos, destacámos esquissos de “burros” de cortiça, croché,  de pedra, barro e  de produtos plásticos a figurar, um dia, nas galerias da sede da Junta  de Freguesia,

      Mas eu tenho saudades…  …

            dos burros que, dos meus tempos do Alqueidão, acotovelavam cangalhas de cântaros de barro, no caminho da fonte;

            dos burros que  vergavam  golpelhas de estrume para a sementeira das batatas  no Chão Falcão;

           dos burros que, na manhã de 8 de Setembro de 1958,  carreavam nutridos ceirões de milho para o Alqueidão;

           dos burros em fila  gritados por mulheres, vestidas  das cores negras  do fonheiro  da terra, que  subiam as encostas do alto da Carreirancha  e pintavam  o focinho, no pó branco da britadeira do Zé Padrinho,  da Reixida;

          dos burros de orelhas hirtas  que  espalhavam sementes na planura das terras úberes da serra e recolhiam  batatas, couves  mimosas de pé alto, maçarocas gordas de milho, feijão frade,  manteiga e catarino, folhudas beterrabas e bojudas abóboras amarelas;

          dos burros que regressavam das bandas   do Covão da Micha e da Cunca,  cingidos de cordas  para equilibrar   carrascos que crepitavam no forno do pão caseiro;

    Mas eu tenho saudades…  …

        dos burros que treinavam crianças, amparavam e guiavam adultos  até  ao seu destino e com eles regressavam, mudos, mas serenos;

       dos burros que, no verão,  volteavam   nas eiras, na  época das debulhas, e ouviam    vozearias estridentes de  homens e mulheres  e ladainhas de palavreado  tão “piedoso”,  que  os ruborizava  de vergonha;

        dos burros  silenciosos, que, nas manhãs da Várzea,   ofereciam cangalhos de  água às  máquinas de sulfatar do  senhor Carlos da ti Aguedinha,  do   Afonso Zeferino, da ti Encarnação Amado   e do Joaquim Trinta, da ti Júlia Epifânea e retribuíam, ufanos, gordos cachos de uvas para fermentar lagares e fumegar alambiques;

      dos burros dos três departamentos  da Freguesia, que,  nas manhãs de sexta feira se “cumprimentavam” no mercado de Porto de Mós e que se conheciam melhor do que os habitantes do departamento do Alqueidão conheciam os do departamento da Serra;

      Mas eu tenho saudades… 

      dos burros que no dia 1 de Janeiro de cada ano subiam  a  Nossa Senhora da Tojeirinha e  a troco de umas voltas à capela e duns débeis estampidos de  foguete, apanhavam  cá umas  vergastadas  e arrochadas  de  fazer estremecer  o PAM;

      dos burros mui “ajuizados” que, nas manhãs  dos 4 e dos 20   carregavam os seus donos até á feira de São Mamede e, à noitinha os traziam de regresso a casa, quase inertes e carregados de…  sono;

       do burro que o ti Espiritual   a ti Laura da Carreirancha  me emprestaram para dar o passeio dos “intelectuais” até ao chão Falcão e  me  proporcionou   momentos de alta burguesia e  de baixa vilania  e que vitimei  sem o pagar nem  ao trabalho de abrir a cova; Mas já fiz as pazes com todos.

A terminar:

       Não sei o que comiam  os burros  do Alqueidão. Apenas  sei  que comiam muita porrada

  17 de Agosto de 2018

A. F.

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