Pulguito

Inocêncio é filho do Chico da Pulga, por isso chamam-lhe Pulguito. Nasceu no Beco do Canto, uma ruela sem saída que fica à esquerda de quem desce a Rua Padre Júlio Pereira Roque em direção à estrada principal.

Depois de uma vida inteira de trabalho, ele é atualmente um dos utentes do Centro de Dia do Alqueidão da Serra. Aproveita o tempo para fazer artesanato e vai escrevendo poesias num cadernito que traz sempre debaixo do braço. Escreve sobre as situações que vive, sobre os lugares que visita, sobre as pessoas que encontra e sobre a sua própria vida.

História de Vida

Desenho de Francisco Furriel Escolhedoras de Carvão Trabalhadoras da Empresa Mineira do Lena

A minha mãe trabalhava
Nas Alcanadas na mina de carvão
Uma hora distante, eu ia-lhe levar a sopa
Nos dias que não havia pão.

Os caminhos eram ruins
Mal se podia andar
Eram tão maus
Que me faziam tombar.

Um dia fui-lhe levar
O almoço, com a cesta à cabeça
Escorreguei numa laje
E parti a cabeça.

Quando me levantei
Vi tudo espalhado
Apanhei do chão o resto
Ia todo desanimado.

Nesse dia ia a chorar
Ia todo desanimado
O resto que eu havia de comer
Ficou todo espalhado.

***

No regaço da minha avó
Tantas horas passei
Que Deus lhe pague um dia (no Céu)
Que eu não me esquecerei.

Foi com ela que me vi na vida
Com ela a trabalhar
Cantava canções bonitas
Que eu não deixei escapar.

As canções que ela cantava
Era só para me amimar
Eu sempre gostei de andar
Com ela a trabalhar.

Ela para me contentar, dizia-me:
“O trabalho do menino é pouco,
Mas quem o desperdiça é louco”.

Estas cenas passadas,
Mas  não esquecidas
Ficam gravadas
No resto da vida.

Rua da Tojeira

Eu nasci no Alqueidão
Ao pé de uma nogueira
Nunca vi coisa melhor
Que a rua da Tojeira.

Eu era do Alqueidão
E fui parar à Tojeira
Algo me aconteceu na vida
Foi uma grande doideira.

Passei grandes dificuldades
Como eu não houve igual
Muito sofri neste mundo
Sem nunca fazer mal.

Sentado a  esgravelhar milho
Alguém se apercebeu
Que eu estava a choramingar
E que nada me aconteceu.

Fui convidado a passear
Coisa que eu nunca fiz
Fui parar a terras longínquas
Fora do meu país.

5 dos seus 7 filhos

Plantei três roseiras
Em redor do meu poço
Reguei-as enquanto pude
Mas agora é que eu não posso.

As três roseiras delicadas
Tenho-as de estimação
Trago-as sempre fechadas
Dentro do meu coração

As três roseiras que pus
Todas bem cheirosas
Muito bonitas
E muito maravilhosas.

Essas flores de jardim
Nem todos as podem desfolhar
Vão caindo pouco a pouco
Até um dia acabar.

A roseira que eu escolhi
Foi para a estimar
Sempre a estimei bem
E a tenho que respeitar.

Três roseiras que plantei
Num dia de vento
Pois essas roseiras andam
Sempre no meu pensamento.

Na minha roseira enxertei
Sete garfos diferentes
Quatro cravos e três rosas
Todos com cheiro atraente.

Pus quatro craveiros no jardim
Não todos ao mesmo tempo
Dois pegaram bem e o outro menos mal
E o outro levou-o o vento.

Dos quatro craveiros que pus
Com muita estimação
Três deram flor
Só um é que não.

A flor que eles deram
Guardo-a com sentimento
Peço que não me saia
Fora do meu pensamento.

Dos quatro craveiros que pus
Todos deram botão
Três resistiram na árvore
E o outro caiu no chão

Essa flor que caiu
Nem me quero relembrar…
Tanto fiz na vida
Para a poder guardar.

*****

A minha casa velhinha
Pega mesmo com a estrada
Ao sair de dentro dela
Vejo a vida atrapalhada.

Saio e piso a estrada
Eu não sei para onde ir
Vejo tudo ao contrário
É a minha vida a desistir.

Olho para trás e vejo
O caminho a desaparecer
Sinto nas minhas pernas a doer
Sinal de enfraquecer

Vejo a falta de visão
E as pernas a tremer
A memória a falhar
É sinal de desaparecer.

Ao entrar na minha rua
Vejo o sol a brilhar
Vejo tudo a correr
Só eu a descansar.

Agora a minha vida
Já não tem remissão
Umas pancadas no sino
E avisar o sacristão.

Centro de Dia de Alqueidão da Serra

Abalei de minha casa
Um dia chateado
Vim pedir a esta casa
Para ser auxiliado.

Pedi a uma Senhora Doutora
O conforto para me dar
O conforto que tive dela
Foi que podia ficar.

Vim para esta casa
Mas mais por andar aborrecido
Se não fosse por isso
Ainda não tinha vindo.

Uma casa onde se está bem
Mas não é para brincar
É para andar com jeito
E ao respeito não faltar

Sempre fui educado
Por aquilo que me ensinaram
Mas sinto-me desanimado
Por qualquer coisa que me faltaram.

*******

No Centro de Dia o ti Inocêncio dedica-se ao artesanato. Faz moinhos de vento com latas velhas e garrafões de água vazios, entre outras coisas, e ajuda sempre nas atividades que lhe são propostas.

O Caderno azul do ti Inocêncio espelha os seus sentimentos, emoções, alegrias e tristezas, o seu modo de estar na vida.

****

O Centro de Dia desempenha um papel fundamental, também com o apoio domiciliário, na medida em que permite aos idosos ficarem nas suas casas sem que lhes faltem os cuidados básicos, alimentação e higiene. É uma luta diária contra a solidão e o isolamento a que estão votados muitos dos nossos idosos.

Esta entrada foi publicada em Biografias. ligação permanente.

3 respostas a Pulguito

  1. Clara diz:

    Passei uma grande parte da minha vida no Alqueidao ,apercebo me que existem muitos tesouros desconhecido .Linda filosofia da sua vida . Felicidades !

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  2. Maria Matoa Amado diz:

    Admiravel como relata a mais importante parte da sua vida! Continua, Pulguico! Tive o prazer de te encontrar na festa do Alqueidão em 2018, sempre com olhar de muita vivacidade.

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  3. Maria Saragoca diz:

    Gostei de ler,desconhecia este lado artistico do meu vizinho
    Desejo-lhe muita saude e nao perca esse livrinho azul
    Um abraco

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