Nossa Senhora

É muito antiga e sincera, na freguesia de Alqueidão da Serra, a devoção a Nossa Senhora.

A festa principal do Alqueidão realiza-se em honra da Mãe de Deus, com grandes manifestações exteriores de louvor, ao passo que a festa do padroeiro da Freguesia, se faz com muito menor brilho visível.

Sob duas invocações ela é particularmente venerada: Senhora do Rosário e Senhora da Tojeirinha.

Entre as formas por que o Povo, durante muitos anos, exprimiu a sua tradicional devoção à Virgem contava-se a realização do mês de Maria.

Não se sabe desde quando vem esta prática religiosa, no entanto, é aceitável que ela tenha nascido com os princípios da vida religiosa da Freguesia, uma vez que a tradição oral afirma que vem de tempos que ninguém soube fixar.

Pelos finais de Abril, as crianças do Alqueidão, esmeravam-se na apanha de flores campestres: maias, cachuchos,  rosas albardeiras, etc.

Com estas delicadas flores bravias, entremeando raramente uma ou outra de jardim,  grupos de raparigas compunham as ofertas.

Estas ofertas eram, nada mais nada menos que modestos açafates de verga de forma redonda, em cujos rebordos elas espetavam dois abicados ramos de vime, de figueira ou de qualquer outra haste que vergasse facilmente, de forma que a boca do açafate ficasse dividida em quatro partes iguais. Isto obtinha-se cruzando as ditas hastes na parte de cima ligando-as aí, com um  atilho e espetando a outra ponta no lado oposto à primeira fixação.

Cada uma das partes destes arcos, era depois forrada com infindáveis raminhos entronchados, em que as referidas flores apareciam distribuídas segundo o gosto de quem fazia a “oferta”. Desta maneira, nem a mais reduzida nesga de arco ficava à mostra, deixando, todavia bem à vista, a separação de arco para arco.

Um grupo de “ofertas”, sem número fixado, tinha o nome de “rancho”. Todos os anos, havia pelo menos dois: o do Alqueidão e o da Carreirancha. Mas, há memória de se ter apresentado também um da Senhora da Tojeirinha, abrangendo a Rua de Cima, e outro de A-do-Ferreiro, junto com a Calçada.

Cada “rancho” tinha sua bandeira que era um modesto pedaço de pano-cru, sobre o qual fixavam um ou mais “santinhos”. O lugar do centro pertencia sempre a um registo de Nossa Senhora.

A bandeira ostentava ainda outros enfeites coloridos, quer de estanho quer de papel ou de tecido. Assim composto, o pano punha-se num pedaço de cana, em geral por enfiamento desta numa parte do tecido que a costureira deixara  para tal fim.

Este conjunto ligava-se à  cana de maior tamanho, que formava a haste vertical duma cruz e que era forrada de pano branco, igual ao do pendão. Nela pegava com duas mãos, quem levasse a bandeira.

Meia hora antes do começo da “oração”, caía o sinal do alto da torre dado pelo sino grande.

A tempo de chegarem à igreja a boas horas, os “ranchos” punham-se em marcha, cantando.

Abria o cortejo o menino escolhido para levar a bandeira, ladeado por mais dois se ela tinha borlas. Seguiam-se as meninas com as “ofertas” à cabeça.

Atrás, iam as raparigas organizadoras do “rancho”, com as pessoas que podiam e queriam juntar-se. Pelo caminho adiante, juntavam-se mais pessoas com “ofertas”, que se metiam no grupo respectivo.

Enquanto durava o percurso, todos cantavam:

Caminhamos para a Senhora,
Com as nossas flores abertas;
Está a chegar o dia
De entregarmos as ofertas.
Muito lindo é o Céu,
Todo cheio de alegria,
Onde não há sol nem sombra:
Tudo é claro dia.
Formoso botão de rosa,
Que nasce ao romper do dia!
Ó pura, cheia de graça,
Eu te saúdo, Maria.
Avé, Maria, bendita,
Bendita sempre sejais,
No Céu por todos os anjos,
Na terra, pelos mortais!
Ouvi um grito no Céu.
Ai Jesus! O que seria?
Era um anjo a cantar
Filho da Virgem Maria.
 

Se as quadras não chegavam para encher todo o tempo do percurso, recorriam à repetição delas, pela mesma ordem.

À entrada do adro, a quadra dizia:

Não chegais ao adro sagrado,
Sem a maior devoção!
Rezemos um Padre-Nosso
Pelas Almas que lá estão.
Chegado ao portal da igreja, o “rancho” cantava:
Quando entrais não receais,
Na casa da oração,
Oferecemos as “ofertas”
Ao Divino Coração.
E, uma vez dentro do templo, entoava:
Na santa Casa entramos,
Onde está S. José,
O Divino Sacramento
E Nossa Senhora ao pé.
 

Ao mesmo tempo que as “ofertas” eram dispostas ao pé dos altares (menos no daquele em que se realizava a “oração”  que era o da Senhora de Lurdes que ficava no enfiamento do arco cruzeiro, à mão esquerda de quem o encara) os “ranchos” prosseguiam, juntando a palavra com a acção:

Aqui tendes, ó Maria,
Esta oferta de flores,
Apanhadas pelos campos,
Pelas mãos dos pecadores.
Aqui estou, Virgem Senhora,
Já contrita na verdade!
Pedindo misericórdia,
Perdão, perdão e piedade!
Pela Vossa Conceição,
Ó Maria Imaculada,
Tornai bem puro o meu corpo,
Minha alma santificada.
Mãe de Deus, nós vos pedimos
O perdão dos pecadores,
Para que unidos na glória,
Demos ao Filho louvores.
 

Assim que o último “rancho” entrava, o Senhor Prior, revestido da batina, sobrepeliz e estola, já com todos os castiçais da banqueta acesos, dava começo às cerimónias do costume.

Rezava o terço, entremeado, com outros versos do riquíssimo cancioneiro mariano; fazia a leitura duma breve meditação sobre a Virgem Maria, ilustrada, por um exemplo demonstrativo da protecção dispensada por Ela aos seus devotos, mesmo àqueles que, nalguma fase da vida, se esqueceram de lhe continuar fiéis.

A Ladainha Lauretana era cantada, ou rezada, consoante o dia tinha mais ou menos solenidade.

Lembradas as almas do Purgatório e feitas mais algumas orações variáveis, seguia-se a encomendação a Nossa Senhora, escrita por S. Bernardo. A “Salvé, Rainha”, por vezes cantada, encerrava a devoção.

A seguir vinha a despedida, cantada pelos dois ranchos, que começava quando, retiradas as “ofertas”, se organizava o cortejo para a saída.

Os versos, próprios deste momento eram:

Adeus, ó Virgem Maria,
Levo o teu olhar no peito,
E, cá dentro, uma saudade
Do teu sorriso perfeito.
Adeus, ó Mãe,
Adeus, Maria!
Ó lá, no céu,
Eu vos verei, um dia.
Adeus, ó Virgem Maria,
Pureza, Amor e Perdão!
És nosso farol e guia.
Caminho da perfeição!
Adeus, ó Mãe,
Adeus, Maria!
Ó lá, no céu,
Eu vos verei, um dia.
Adeus, ó Virgem Maria,
Ó Virgem Maria, adeus!
Dos teus filhos não te esqueças,
Adeus, ó Maria, adeus!
Adeus, ó Mãe,
Adeus, Maria!
Ó lá, no céu,
Eu vos verei, um dia.
Da Santa Casa me vou,
Virgem Maria, sagrada!
A vós, entrego meu corpo,
A Jesus Cristo, a minha alma.
À hora da minha morte,
Virgem, serás convidada.
Adeus, ó Mãe,
Adeus, Maria!
Ó lá, no céu,
Eu vos verei, um dia.
 

Ordenadas as “ofertas”, a saída iniciava com o verso “da santa Casa me vou”, que os “ranchos” cantavam, todos em coro, até chegarem ao adro. Aqui dividiam-se, conforme a zona a que pertenciam, e pelo caminho além, até final do percurso, cada qual ia repetindo todo o “Adeus”.

Durante incontáveis dezenas de anos foi assim o mês de Maria no Alqueidão, talvez com alguma pequena diferença no respeitante a cânticos. Era um testemunho público e solene da mais profunda e sincera devoção do Povo à Virgem Maria.

A esta piedosa e festiva manifestação de crença nos poderes maternais de Maria, vinha associar-se com muita regularidade gente de freguesias vizinhas, nomeadamente os habitantes das Alcanadas.

Mas, tudo isto acabou!

As alegres ofertas compostas de aromáticas maias, cachuchos e rosas albardeiras não desfilam mais pelas ruas do Alqueidão ao som de cânticos. Tudo isto terminou com a chegada do Rev.º Padre Manuel Ferreira, em Novembro de 1950.

As ofertas foram substituídas por envergonhados ramitos de quaisquer flores que alguns iam enfiar, a modo de comprometidos, nos buracos existentes num metro quadrado de rede de capoeira de coelhos, pregada em quatro sarrafos de ripa, e posta diante do altar de Nossa Senhora do Rosário!

Os atentos à observação dos factos repararam que a partir daí, para muitos, aqueles noites amenas de Maio, deixaram de ter aquele encanto que tinham anteriormente.

Uns passaram a ficar em casa a descansar do esfalfante trabalho do campo, outros procuravam de várias maneiras, a compensação dos atractivos que lhes roubaram com a inexplicável supressão de todo aquele simples cerimonial, que já era falado por seus avós como tradição vinda de gerações muito anteriores.

Passaram a realizar-se anualmente duas estas em hora da Mãe de Deus:

  • A festa em honra de Nossa Senhora da Tojeirinha em Junho;
  • A festa em honra de Nossa Senhora do Rosário em Agosto.

Atualmente estas festas ainda se realizam.

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