Nos tempos em que a vida local exigia a existência de rebanhos de cabras e de ovelhas, mal começavam as sementeiras cá em baixo na aldeia, os donos desses animais tratavam de pensar em transferi-los para a Serra.
Chamavam “transumância” a esta medida que datava de anos sem memória nem conta na história desta terra. Com isto pretendiam os donos dos animais evitar os prejuízos que lhes viriam inevitavelmente da diminuição das zonas de pasto por causa do aproveitamento do terreno para cultivar.
Evitavam assim de ouvir as justas reclamações dos proprietários que, não tendo cabrada, iam dar com as suas culturas devastadas e com as árvores todas roídas. As actas das sessões municipais estavam cheias de protestos desta natureza e de medidas contra semelhantes abusos, entre as quais figuravam as coimas, mas tudo sem resultado que se visse.
A todas estas claras vantagens havia que somar os lucros resultantes do aproveitamento das pastagens da Serra, precisamente na altura em que a vegetação espontânea atingia o melhor da sua qualidade e o máximo da sua quantidade.
E ainda havia outras vantagens, como por exemplo, a economia resultante do facto de a permanência dos gados na Serra evitar as despesas e trabalhos com o transporte do estrume, que sendo produzido mesmo dentro da propriedade, era só passá-lo do monte em que tinha sido junto, para o terreno da sementeira ao qual o curral estava ligado.
Por todos os motivos, resumidamente enumerados, a Serra povoava-se de cabeças de gado. Era coisa digna de se ver: as ovelhas comendo a viçosa relvinha verde e as cabras, que eram um bicho bulido, a comer os grelos das silvas ou as folhas mais tenras dos rebentos e outros mimos que a Natureza lhes colocava diante dos olhos.
Cá abaixo à aldeia, quando o vento do Nordeste soprava pela garganta do Penedo Grande fora, chegava a música dos chocalhos, e ouvia-se o balir grave das ovelhas-mães a chamar pelas crias, tudo à mistura com os prolongados “mééés” dos cordeirinhos que saltavam de penedo em penedo.
Ao anoitecer recolhiam ao curral. Aí ruminavam a barrigada, ficavam ao abrigo do frio e também mais protegidos do inimigo.
O curral era a construção mais simples que imaginar se pode. Os materiais utilizados resumiam-se a pedra armada uma sobre outra a tecer parede, umas tábuas na porta com uma tranca de madeira na padieira, uns barrotes e umas ripas sobre as quais era colocada a vulgar telha moirisca.
Quanto às medidas e aspecto exterior, podia representar um quadrado ou um rectângulo, e nas paredes só havia uma brecha, a da porta. O piso era o chão da Serra, coberto daquele mato de que resultaria um excelente estrume.
Entre o chão e o telhado existia uma espécie de sótão, com muito reduzidas dimensões. Era onde o pastor passava as suas noites. Ali dormia embrulhado nas quentinhas mantas de lã pura que, tosquiado o seu gado, era cardada pelos velhos especialistas mindricos e depois de enovelada pelas dobadoiras passava a ser urdida nos antigos teares manuais da Freguesia. Deste modo se resguardavam da friúra nocturna da Serra.
O tamanho do rudimentar curral orçava pelo número de rezes do seu proprietário. E se era maior, prestava-se a que o dono beneficiasse desse facto, consentindo que um amigo ou vizinho recolhesse nele o seu próprio gado, o que aumentava a produção de estrume.
Além de abrigo nocturno para rebanhos e pastores, o curral servia também para arrecadação de alfaias agrícolas (arado, grade, etc.) durante o tempo em que não tinham préstimo.
Utilizavam-no ainda para arrecadar a erva cortada que vinha da meda, e também para a recolha do pasto e dos crutos secos.
E quantas vezes ele deu providencial resguardo aos caçadores, aos roçadores de mato e aos passantes de acaso, colhidos de surpresa por uma daquelas ventanias e escardoças de chuva!
Mas a verdade é que o fim principal dos currais era garantir acolhimento ao pastor e ao rebanho.
Cabe, neste lugar, a pergunta: Como é que o pastor vivia, no que respeita à sua própria alimentação?
Alguns partiam aviados de farnel para alguns dias. Quando acabava, eram reabastecidos para mais alguns dias e assim sucessivamente, conforme ficava combinado previamente com todos os pormenores, tais como quantidade e qualidade dos alimentos, dia, hora e local de entrega.
Outros recebiam, diariamente, o comer indispensável à vida pela mão da família ou de quem tomasse a cargo essa pensão.
Também acontecia dois ou três pastores combinarem entre si a maneira de serem diariamente abastecidos de comer de tacho. À vez, cada um deles se deslocava à povoação e recebia das famílias respectivas aquilo que tivessem cozinhado para esse efeito. Depois, era só aquecer, e para isso não faltavam carrascos, pinhas e gravetos sem discriminação.
E também havia aqueles que, despreocupados quanto à sorte das suas rezes, ceavam todas as noites em casa e dormiam na sua própria cama. A este número pertenciam as raparigas que exercessem o pastoreio. Elas nunca ficavam fora e levavam sempre consigo o rebanho.
Mesmo assim, o dia do pastor oferecia-lhe algumas compensações morais. Valia-lhe o recurso a saudáveis folguedos em que passava horas. É que, não tendo o gado onde causasse prejuízos no alheio, (por andarem tão longe das terras de semeadura ou das árvores de fruto), o tempo era deles sem limite, além daquele que o sol marcava.
Ora, como havia sempre um pífaro, aberto a canivete por mãos habilidosas num ramo de sabugueiro, a qualquer hora e com toda a facilidade e muita frequência se armava o bailarico.
Este era um dos aspectos da vida que por lá passavam. Uns, a maioria, ficava pela Serra até àquela altura de Abril em que a Primavera já oferece mais quantidade de pastos cá em baixo. Outros por lá ficavam até fins de Maio.
As condições de vida das pessoas mudaram, e já não existem os grandes rebanhos de antigamente, no entanto ainda se encontram algumas ovelhas e cabras a pastar nas locais mais afastados da aldeia.