Transcrição gráfica efectuada pelo Padre Américo Ferreira a partir de gravação sonora da oração laudatória do Padre Júlio Pereira Roque, proferida pelo Cónego Dr. José Galamba de Oliveira, no dia 25 de Outubro de 1970, em Alqueidão da Serra, no contexto das celebrações do 350.º aniversário d a criação da freguesia.
“Convidaram-me há uns 8 dias para fazer, aqui, hoje, a evocação do Padre Júlio Pereira Roque em cuja honra se acaba de descerrar esta pequena lápide a recordar-lhe o nome e os feitos.
Não era eu que devia estar aqui. O culpado é o meu incorrigível desejo de servir, junto à dificuldade de dizer um não. Fora convidado o Senhor Cónego Lacerda, companheiro de armas do Senhor Padre Júlio Pereira Roque, nas duras batalhas travadas pela restauração da diocese e noutros campos de acção.
Ninguém melhor do que ele poderia e saberia fazer reviver a figura e a personalidade deste homem invulgar: pormenores biográficos, anedotas históricas, factos conhecidos ou inéditos, de tudo o Senhor Cónego Lacerda se serviria, para, no seu estilo inconfundível, nos deliciar por uns momentos.
Ninguém, mais do que eu, lamenta que uma gripe seguida de um forte ataque de reumatismo, o tivesse impedido de vir. Sugeri outras personalidades mais competentes e curiosamente adornadas com o pó das bibliotecas e arquivos, como o Senhor dr. Cristino, culto professor do nosso Seminário e o dr. Luciano e este, mais a mais, membro do mesmo concelho.
Estou sinceramente arrependido de não ter insistido num destes nomes e de não ter recusado aceitar o convite. Que não era para tapar um buraco, diziam, e tinham razão. O buraco fica aberto na mesma. Sentimos todos a ausência do Senhor Cónego Lacerda, por cujas melhoras fazemos os mais ardentes votos; e eu continuo a sentir pena de não estar simplesmente no meio de vós.
Não se trata de figuras de retórica nem desacordo com a festa que nos reuniu aqui. É óptima ideia cuidar das nossas aldeias e vilas, recordar os homens bons que nos precederam, pôr em justo relevo os seus inegáveis valores. E penso que não é de somenos importância a vinda aqui das Ex.mas Autoridades.
Precisamos de elevar o nível de vida da gente do campo e da serra, é certo: de melhores salas de aulas, vias de comunicação, previdência e assistência, energia eléctrica, água potável, etc.. Mas não podemos esquecer que é aqui, na aldeia, que em geral, se forjam e temperam carácteres dos grandes homens. Mal de nós se o olvidamos. E tenho pena de que durante tanto tempo a província estivesse na situação do Ultramar: objecto de injusto desprezo, e, até as vezes de total abandono. Deus queira que ainda se venha a tempo.
Mas receio que nos encontremos diante de um movimento irreversível de abandono da aldeia para uma concentração urbanística aonde, teimosamente, continua a ocorrer a concentração da actividade industrial. Mas não foi a isto que vim. Desculpem.
É de Jupero, o Padre Júlio Pereira Roque que tenho de tratar. Como, se não o conheci, ou, pelo menos, me não recordo dele? Cantei missa em Julho de 26 e o Padre Júlio morria dois anos depois. Não tive tempo de saber que tipo de homem era: se baixo ou alto, magro ou gordo, a cor do cabelo, a natureza do olhar, o timbre de voz, a forma do rosto. Nem é preciso afinal. Só se eu fosse pintor ou escultor para fixar plasticamente o seu tipo físico!
Ouvi dizer que era um homem duro, agarrado as suas ideias, as vezes mal humorado, pouco aberto a diálogos. Talvez fosse. E que tem isso? Que poderia a gente esperar de alguém criado na escola do padre Afonso, nesta terra, hoje alindada, mas então dura e inóspita onde só a teimosa insistência do homem fazia as pedras produzir pão, azeite e batatas e a erva magra da serra, com os pequenos arbustos transformar-se em carne ou leite?
Que sabe disso a mocidade de hoje, vestida de malhas fabricadas por máquinas e de fibras artificiais em vez de estamanha e riscadilho e das mantas tecidas nos teares da aldeia e das camisolas fortes, feitas durante os longos serões do inverno ou nos lazeres da vida pastoril, com a lã das ovelhas, fiada pelas velhas e pelas moças da terra?
Era dura a vida. Eram de rija têmpera os homens! Nem sei como foi a infância nem a juventude do Padre Pereira Roque. O que eu sei é que nos encontramos diante de um homem que formou um nobre ideal e que se soube bater por ele. Não é entre fumos de tabaco ou de álcool, no café ou na taberna, na excitação fácil de companhias duvidosas ou de lúbrica música de batuques que se preparam os homens de amanhã.
A gente é como a seara. Mal vai se não cai geada e se não há treino de luta. Jupero foi um combatente, um lutador. Não se gastou em questiúnculas; pequenas escaramuças como de zaragateiros não lhe detiveram o caminho.
A sua terra, o seu concelho, a sua região, os necessários ou almejados melhoramentos, a sua diocese, o clero, a instrução, a Igreja, eis os elementos de que se entretecia o ideal pelo qual batalhou até ao fim.
Nascido em Alqueidão da Serra, a 7 de Maio de 1876, veio a falecer a 18 de Outubro de 1928. Morreu novo; 52 anos; talvez incompreendido de alguns, mas com uma grande alegria na alma. Pode dizer-se que, por serviço de Deus, das almas e da Igreja, o que mais o apaixonou foi a restauração danossa diocese. Fora extinta em 30 de Setembro de 1881. Logo em 1885 começou a reacção por parte de um homem leigo, um benemérito que a História não pode esquecer – Vitorino da Silva Araújo. Este, porém, não era da têmpera rija de Jupero.
Recomeça a campanha em 1903. E, de então por diante, não pára, não descansa, não desanima, não depõe as armas. Atacado, escarnecido, desacompanhado, Jupero forma com o clero de Porto de Mós um pequeno grupo. Vem novas adesões de freguesias vizinhas. Depois, é o clero da vigararia de Leiria, a princípio um pouco hesitante, para não desgostar o Senhor Bispo de Coimbra.
A arma de que se serve é a pena, ora em cartas particulares, ora sobretudo na imprensa, o Portomosense de que é assíduo colaborador. Fui ler os seus artigos para o conhecer melhor. Vi nele um homem possuído por uma ideia, que o domina, o comanda, o conduz. Bate sempre as mesmas teclas; insiste, repete quase num estilo matraqueador de moderno mentalizador marxista. E tanto bate, tanto bate que arrasta os outros. É um chefe. Leiria vibra e deixa-se arrastar. Monárquicos e republicanos, padres e leigos, católicos e indiferentes, o comércio, as famílias mais representativas da terra, todos se dão as mãos. Não faltam os operários, os artistas, como então se dizia. O teatro D. Maria Pia enche-se para uma grande assembleia em que toma parte a melhor gente da terra. Porto de Mós vai agradecer.
El-rei recebe uma luzida comissão. Há promessas que se esvaem. Jupero insiste, a imprensa diária e regional alinha com o “Portomosense. Desde os grandes diários como a Palavra, do Porto, o Século, o Diário de Notícias, o Correio da Noite, o Correio da Tarde, o Diário Ilustrado, a Época, a Nação, o Correio Nacional até aos mais afastados jornais da Província e as mais categorizadas revistas como a Revista Católica, os Ecos de Roma e a Voz de Santo António, é um coro unânime de aplausos, de aprovações, de apoios a Jupero.
De repente, apaga-se a luz. Suspende-se a campanha em Novembro de 1904. Aparentemente e na imprensa, apenas.
1913 – 9 anos vão passados; debaixo das cinzas havia brasas vivas. As exéquias por alma do Senhor Bispo-Conde, na Sé de Leiria, dão ensejo a uma reunião do Clero. E a campanha recomeça com novo vigor. Jupero escreve, agora no Mensageiro, nascido a 7 de Outubro de 1914 e no qual o seu fundador, editor e proprietário, o Senhor Cónego Lacerda, o convida a colaborar. Jupero responde as objecções, torna pública a carta e a maneira de sentir do Senhor Bispo-Conde e a representação solenemente entregue a Sua Magestade.
A pequenina faúlha, atiçada em Porto de Mós pelo Padre Júlio Pereira Roque e em três períodos por ele mantida, surte efeito. Jupero vê os seus esforços coroados de êxito. Triunfa.O bispado de Leiria, em má hora extinto, sem razão, ressuscita. Leiria, diocese, assemelha-se aos estados tampões, como a Bélgica e a Polónia. De vez em quando, os grandes atiram-se a ela, com fúria leonina e instinto de chacais.
O exemplo do passado é lição para o presente. Não sei o que teria acontecido se determinadas e insensatas ambições, os não tivessem encontrado unidos e alertados. Por agora afastou-se o perigo. Mas a honra da nossa terra, o interesse da Igreja e das almas e da glória de Deus, o nome dos que nos precederam exigem de nós, prudência, vigilância e fortaleza na defesa e na luta.
Que alegria imensa não terá enchido a alma, a transbordar naquele dia glorioso de 5 de Agosto de 1920, quando a Diocese esteve em Leiria para receber o bispo mandado por Deus!
Não se julgue, porém, que o problema da restauração do bispado lhe absorveu totalmente as energias. Bem pode dizer-se que não havia problema importante de ordem geral, como a educação religiosa, o ataque demo-maçónico ao clero, ou de ordem regional, como o caminho de ferro de Tomar/Nazaré que não tivessem a senti-los a pena apurada de Jupero, um dos mais notáveis polemistas de entre os jornalistas amadores do seu tempo.
Era o “nunc dimmitis”. Jupero recebera uma missão da Providência: lutar pela restauração da diocese. E cumpriu com galhardia. Agora podia recolher-se com a missão cumprida. Não sei como o mundo o tratou. O Senhor chamou-o a Si. Oito anos depois entregava a alma a Deus. Mas deixava em testamento a gente da sua terra e a nós todos, o exemplo dum homem que soube lutar por um ideal nobre,num combate sem quartel. E seguiu-o até à vitória final.
Nem a todos os que lutam está reservado o triunfo. Mas todos os que sabem lutar recebem, ao menos a mais alta recompensa: o testemunho da própria consciência do dever cumprido.
A pedra que aqui fica é a memória de um homem que honrou a sua família e a sua terra, que teve um nobre ideal a norteá-lo, que soube servir com denodo Deus, a Igreja e a Pátria.
Que a sua memória perdure e sirva de exemplo aos homens de hoje e de amanhã e que o Alqueidão da Serra, com muito mais possibilidades hoje do que ontem, seja viveiro fecundo de homens que, a exemplo do Padre Júlio Pereira Roque, no seguimento do Divino Mestre, com nobreza e desinteresse saibam servir.
José Galamba de Oliveira”