Pino de Junho de 1967…
Os estudantes regressaram a casa para as férias grandes. As professoras primárias encerraram as últimas folhas dos livros da escola.
Entre si planeiam um passeio à serra. Definem itinerários e divulgam convites: “Os intelectuais, em passeio de burro”: Alqueidão, Carreirancha, Calçada Romana, Chão Falcão”.
E convidaram-me, não por fazer parte dos intelectuais, mas por fazer parte dos…
Para todos os habitantes da aldeia, o burro era um animal de estimação, até por ser o único meio de transporte.
De burro, com cangalhas, ia-se à fonte buscar água… de burro, com golpelhas, ia-se levar o esterco às terras… de burro, com seirões, iam-se buscar carrascos para o lume e milho para as eiras.
Ir de burro a Porto de Mós ao mercado das sextas feiras era o usual, como usual era gritarem-se ladainhas fiadas de palavrões grosseiros (que chorrilho!) para ajudar a calcar o trigo nas eiras. Nele sovavam-se azedumes, amuos, arrelias e indisposições… tudo.
Sem favor… é credor de um monumento.
Fiquei surpreendido com a inclusão no grupo organizador, eu que nunca andara de burro!!! Resisti, mas os porfiados convites venceram-me. Mais tarde soube o motivo…
O chefe da equipa, o Carlos, achou por bem escolher o mais elegante, o mais possante e mais adestrado animal para… o senhor prior. De entre os de mais de quatrocentos exemplares (sem exagero) existentes no lugar, seleccionou o melhor. Pediu o burro à ti Laura, mulher do Espiritual da Carreirancha. Ela e o marido, ficaram radiantes com a preferência. Limparam-no bem e trataram bem dele durante a noite.
À hora e local do anterior aprazado, o grupo perfilou-se. Foi-me apresentado o burro, o “especial one”, engalanado de albarda domingueira, revestida de manta multicolor, digna do bragal de noiva rica.
O meu ajudante fez a última inspecção. Deu meia volta ao arrocho e convidou-me a montar. Subi a um murete de pedra desalinhado junto da casa paroquial e, amparado por ele, com sofrível estilo, sentei-me, tomando posse.
Com um verdiço numa das mãos e com a arreata bem segura na outra, acomodei-me a custo, ao dorso do animal.
Os componentes do grupo, ao verem-me, sorriram. De supetão, com elegância e a golpes de perícia, tomaram o seus lugares.
E começou o desfile.
Dado os primeiros passos, o meu burro deu-se conta de que a carga muito hirta, não se sincronizava com o seu caminhar e tentou rejeitá-la. Contorcendo-se de má vontade, os seus movimentos descontentes faziam-me bamboar como sino de torre em dia da festa.
Não obstante, ser um caloiro na arte de cavalgar, solene e impante, com quase noventa quilos de peso, de fato preto e de chapéu preto, por momentos, imaginei-me um nobre peralvilho, Dom Quixote, entronizado em soberbo corcel galopando as veigas fartas de Castela.
Fiz questão de seguir no couce do cortejo. Algumas pessoas, despertadas pelo tropel inusitado da marcha saíam de casa para saudar. O Carlos, de lenço mandão de escuteiro, atado ao pescoço, levava o guião e marcava o ritmo da marcha.
Não tardou que o cortejo começasse a desconjuntar-se. Vencida a Carreirancha, os burros lestos dos intelectuais bem adestrados, avançaram harmoniosos e deixaram o meu ficar para trás, de cada vez mais reticente em prosseguir, não obstante as vergastadas inclementes desferidas.
Na primeira curva da calçada romana, o do guião olhou para trás e viu a enorme distância que mediava entre os titulares e o caloiro na arte. Todos pararam e eu… aproveitei.
A modo de banda musical, em tarde de procissão, os meus pés fizeram de baquetas ritmadas a ruflar no tambor do burro e ele, animoso, num assomo de coragem e valentia, estugou o passo, sacudiu os receios e integrou o cortejo. Que valentão! E eu fiz-lhe uma festinha, acariciando-lhe o pelo .
E a caravana compacta ensaiou a escalada da serra, pelos córregos serpenteantes da encosta, e o meu valentão não mais descolou do pelotão.
Chegados ao Chão Falcão, termo da jornada, ajudaram-me a descer. Com cuidado atei o meu asno a um pinheiro, não fosse ele fugir e ajudei a confeccionar o almoço.
Com gargalhadas à mistura, o tema da conversa foi a minha arte de bem cavalgar.
Antes de se organizar cortejo de regresso, todos a uma só voz, instaram para eu saltar o burro. Resisti… resisti… porque de antemão sabia que uma enorme cambalhota me esperava, para gáudio de todos. Mas não pude furtar-me a tão reiteradas súplicas .
Saudei os tempos de estudante, em que, nas aulas de ginástica, saltava o plinto. Muito a custo, determinei-me.
Desatei o jerico. Conduzi-o a caminho seguro e plano. Confiei a arreata ao chefe do grupo e tentei o salto.
Recuei uns 20 metros. Imprimi-me velocidade de atleta olímpico. Fiz vigorosa chamada no trampolim do chão. Calquei as mãos nos suportes do animal. Subi bem alto e, amolecido, deixei-me cair sobre a albarda fidalga do meu valentão.
Todos aplaudiram. Mas o burro… desferiu um estrépito estranho e começou a regar o pó.
Pressentindo haver algo de anormal, apressei o regresso. No cortejo, o burro das provisões caminhava à frente. Seguia-o o grosso do pelotão, cavalgando com elegância. Na retaguarda seguia eu.
Poucos metros volvidos, o meu burro começou a estrebuchar e a curvar os joelhos em jeitos de alijar. Quase exangue, desfazia-se em humidades porfiadas. Não podia mais. Aproveitei uma inflexão e consegui descer.
Peguei na arreata e… a pé, humilhado, desci a encosta. A caravana, olhando para trás, viu-me a pé, a conduzir o burro e … riu…riu.
Corado de vergonha, a pé, com a arreata na mão, imaginei-me um pacóvio Sancho Pança, de botas no cinturão, vestido de figurão, a pisar as pedras anónimas duma serra distante. E… entendi a razão do convite.
Desta vez, esperaram por mim. De regresso à Carreirancha, vi alguns burros a beber água na Barreira. Indiferente, avancei. Bati à porta do Espiritual Vieira da Costa e entreguei o burro à ti Laura. Ao meu muito obrigado, retribuiu jubilosa: “quando precisar”…

A Barreira em 1982 – Local onde actualmente está o jardim onde foi colocado o monumento em homenagem ao Major.
Os intelectuais olharam, de soslaio, o padrão alusivo às comemorações centenárias da criação da freguesia e…
…continuaram a marcha, sobre as triunfantes montadas até ao local aprazado não longe do cruzeiro. E a mim, a pé, triste, derrotado, sem burro, não ofereceram boleia.
No dia seguinte, por volta das nove horas, tocou a campainha. Fui atender. Era a ti Laura. Com cara de solto posto, gaguejou :” senhor prior, o burro morreu.
Tem de mo pagar”. Disparei uma larga gargalhada e ela, sem achar graça nenhuma, ajuntou: “Ao menos, pague meio dia a um homem para ele abrir a cova”. E eu, indiferente, ripostei com nova gargalhada. E ela… vencida, retirou-se.
Volvidos quarenta anos, no dia 10 de Maio de 2011, mais de noventa alqueidanenses desceram ao Tojal, minha aldeia natal, para “ um encontro de afectos”. Nunca aquela terra recebeu tão nobre como robusta embaixada. Na comitiva, a ti Laura e o Carlos do guião.
Saí de casa para os receber.
Apertaram-se cumprimentos, invocaram-se nomes e alcunhas e reviveram-se peripécias do passado.
Algumas das muito velhas irromperam e usurparam beijos atrevidos, chupados, quiçá recalcados, Deus sabe há quanto tempo. Ele e elas me perdoarão, se julgo mal.
Terminada a recepção, seguiu-se um sessão músico – cultural. Exaltaram-se discursos de ocasião, potenciaram-se promessas adiadas e aplaudiu-se o “Coral” em acordes polifónicos de música clássica e profana.
E tal a proficiência dos meios técnicos do João Gabriel que o “youtube”, registou, longamente, este “encontro de afectos”.
Num convívio fraterno onde se partilhou o pão, prevaleceram os afectos.
Os tempos idos avivaram saudades, engrossaram risadas criativas, reuniram memórias dispersas, inflacionaram elogios fingidos.
E, para memória futura dei cada um dos participantes um cartão, retrato evocativo daquele pino de Junho de 1967.
Chamei a ti Laura. Dei-lhe o retrato… Ela olhou – o e suspirou numa fácil gargalhada: “Oh… o meu burro”!!!
E eu, vitorioso, retirei-me….
E todos se retiraram, levando um burro na mão.
Agosto de 2012
De “As minhas memórias”
Um dos padres inteligentes que passaram pelo Alqueidão, infelizmente foram tão poucos, os inteligentes….
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