As coisas que o Padre Américo se lembra…
“Numa tarde de verão de princípios da década de 1980, convidei Mons. Silveira, alto funcionário da Secretaria de Estado do Vaticano e o dr. Carlos da Silva para um devaneio serrano. E o itinerário contemplava algumas cordas da Serra de Aire. Trepámos até às grutas da Serra de Santo António, onde aguardámos que a gotícula de uma estalagmite pontilhasse a calvície do motorista em serviço.
Descemos a serpenteante estrada que desce até às grutas de Alvados e trepámos bocados de serra até descansarmos no doce recaibão das grutas de Mira de Aire, pujantes da beleza, sussurrantes de meigas águas policromas.
Prosseguindo no cumprimento do rota serrana, atravessámos o Casal Duro presumido, acenámos ao Valongo quase solitário e rezámos na capela dos Bouceiros, em cuja construção há bocados da minha tímida missão.
Do alto do Vale de Ourém desfrutámos a beleza repousante do Alqueidão, espreguiçado no casario, onde a luz decadente do sol posto espargia nostálgicos revérberos carmesins de opala que desciam lestos.
Ao driblarmos a nogueira grande do outro lado da casa do ti Bernardino, um homem esquivo, alto, vestido de pouco sabão, cruzava a estrada de braços abertos, impedindo a passagem. Aproximou-se e insistiu, insistiu para o seguirmos. Os meus companheiros de viagem a custo acederam.
Arrumei a viatura numas das improvisadas assequias da Carreiranha e seguimos o Manel da Clementina até ao curral das ovelhas que se situava por detrás do monumento de homenagem aos trabalhadores da estrada da serra.

Monumento aos Construtores da estrada para os Bouceiros
Com um linguarejar ao ritmo de colcheias e semicolcheias introduziu-nos num cubículo contíguo ao curral, onde havia uma cama mal cheirosa, um pote de azeitonas e um piparote de vinho.
Intimou-nos, veemente, a sentar. Pegou num pão seco que havia comprado há uma semana ao padeiro, Inocêncio Frazão e, com a mão adiposa de sujidade deu um bocado a cada um. Enfiou a mão no pote das azeitonas e, prazenteiro, ofereceu-as aos três discípulos.
Entretanto, viu um copo pejado de surro e vinoso de uso, desandou a torneira gemebunda do pipo e ofereceu o primeiro copo ao mais distinto dos convivas, Mons. Silveira, que sorriu, Deus sabe com que vontade.
Repetiu idêntico gesto e beberam todos do mesmo copo.
E em conversa fiada que não admitia qualquer interrupção foi dissertando sobre os priores do Alqueidão.
Conheceu o P. Joaquim Vieira da Rosa, o P. Henrique e o P. Manuel Ferreira, dissecando as suas virtudes e seus defeitos.
Esgotado o panegírico dos priores do Alqueidão todos eles à altura dos nobres pergaminhos da sua terra, fitou-me, entreolhou os meus colegas e, com o copo trémulo na mão encardida sentenciou este elogio: “Mas um PORRA como este, nunca por cá apareceu nenhum”.
E os três personagens morderam o riso.
( de “As minhas memórias”)
SIM GOSTEI MUITO DE LER A HISTORIA DA MINHA TERRA
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