Aquele homem único que foi o Padre Cruz, também esteve no Alqueidão da Serra.
Corria o ano de 1902. O Dr. Cruz, Francisco Rodrigues da Cruz, era este o seu nome completo, chegou ao Alqueidão antes do Cardeal Patriarca, a fim de, com a sua esclarecedora e convincente pregação, dar os últimos acabamentos na preparação de toda a gente para o sacramento do Crisma.
Pela simplicidade do seu trato, conquistou imediatamente a total simpatia dos homens, com os quais se punha a conversar no adro antes dos ensinamentos que dava na igreja.
Espalhou-se entre a população a notícia dum facto que aumentou notavelmente a fama das muitas e grandes virtudes do Dr. Cruz, já faladas por todos, esse facto vinha, então, a ser, que ele tomava banho todas as noites em água fria, durante qualquer estação do ano, como ato de penitência.
Toda a gente estava tão impressionada com as suas palavras, que os homens batalharam tanto com ele para voltar, dentro em breve, a fazer uma missão na Freguesia, que o bondoso sacerdote, em ar de graça, lhes disse:
– “Tornarei pela água-pé nova… Se eu puder”

Nesta altura o Alqueidão pertencia à diocese de Lisboa, por ter sido extinto o bispado de Leiria.
Depois das pregações do Padre Cruz, chegou o Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José Neto, que aqui permaneceu durante 3 dias a fim de crismar o maior numero possível de pessoas.
Este acontecimento de natureza religiosa, começou no dia 26 de Abril daquele ano de 1902, e quem fez o relato escrito que se transcreve a seguir foi o o professor José Candeias Duarte na sua qualidade de correspondente do “Correio Nacional”.
“Chegou a esta terra, vindo de Porto de Mós, o Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, acompanhado pelo clero que estava com ele na Vila, e de muito povo. Aguardavam a chegada de S.a Eminência alguns padres e quase todo o povo da Freguesia, que esperava, apesar dos fortes aguaceiros que então caíam, com ansiedade que um sinal lhes anunciasse a chegada do ilustre visitante.
Às 11,30 formou-se na igreja a procissão, que se compunha das três irmandades erectas na Freguesia, a do SS.mo, do Coração de Jesus e de Nossa Senhora e de muitos anjos, para ir receber o Sr. Patriarca, debaixo do pálio, à entrada da Freguesia. Chovia então torrencialmente e o Rev.º Pároco, reconhecendo a impossibilidade da procissão sair, ordenou que só saísse o pálio.
Era meio-dia em ponto quando uma grande girândola anunciou a chegada do Sr. Patriarca à residência do pároco. É impossível descrever o entusiasmo, a alegria que se apoderou do grande número de pessoas que o esperavam. Todos, num brado uníssono e na alegria estonteante, levantavam muitos vivas a S.a Em.a.
O Sr. Patriarca revestiu-se na residência do pároco e dali saiu debaixo do pálio, acompanhado pelo clero dos concelhos de Porto de Mós e da Batalha, e por muito povo, para a igreja, sendo recebido à entrada do templo pelo Revº. Prior da Freguesia. Depois das cerimónias do estilo, à entrada do templo, um coro de vinte criancinhas cantou o hino de S.a Em.a ensaiadas pelo Revº. Prior. Vimos nessa ocasião S.a Em.a. tão impressionado, tão comovido que algumas lágrimas lhe deslizaram pelas faces.
As ruas por onde passou o Sr. Cardeal estavam ornadas com verdura e flores, muitas bandeiras e arcos. Na rua denominada de Cima, e que dá para a residência paroquial, viam-se alguns arcos triunfais e é ladeada por dois renques de paus, cobertos de verdura e flores, encimados por bandeirolas; estes paus são ligados por um cordão de buxo e alecrim. Esta rua foi ornada sob direcção do nosso amigo José Real, a quem felicitamos pela forma artística como se houve no desempenho da missão que lhe foi confiada.
À hora a que escrevo estão crismados nove centas pessoas. Noutra correspondência, direi o que houver de mais interessante, pois esta vai longa.”
Isto foi publicado no jornal “Correio Nacional” de 2 de Maio. O que vai a seguir, saiu no dia 14.
“O segundo dia da visita, domingo, 27 de Abril, amanheceu também chuvoso. Não obstante porém, logo pela manhã, começou a afluir muito povo. À hora marcada por S.a Em.a. para celebrar a missa pelas Almas das pessoas sepultadas no cemitério desta freguesia, o templo estava repleto de fieis. S.a Em.a. ao Evangelho fez uma alocução substanciosa, atractiva e moralizadora, sobre o Evangelho do dia, “Eu sou a Videira e vós sois a vara”. O povo escutava-o em profundo silêncio. Simplesmente edificante!
Em seguida à missa, não podendo S.a Em.a. ir ao cemitério, como aliás era sua forte vontade, fez as orações fúnebres no corpo da igreja, procedendo logo depois, à administração do Crisma a mais de trezentas pessoas.
À noite houve terço e ladainha, com exposição e sermão pelo Revº. Dr. Cruz que, pela sua simplicidade, clareza e santidade, muito agradou ao auditório que, à cunha, enchia a igreja. Realçou muito esta cerimónia o acompanhamento feito no harmónio do pároco desta freguesia.
Segunda-feira, de novo vemos em volta de S.a Em.a. um numeroso concurso de filhos dóceis e humildes, conquanto a chuva estivesse ainda caindo. Neste dia foi administrado o crisma a mais de cem pessoas e, à noite, erigiu-se canonicamente e com solenidade a “Via-Crucis”, havendo também acompanhamento a harmónica e cânticos que mais de duzentas vozes fizeram ouvir. O número de pessoas crismadas sobe a mais de mil e cento e vinte.
Na terça-feira, dita a missa, despediu-se S.a Emº. Num discurso que fez a quem tantas provas de respeito e amor lhe tinham dado. Foi então que, pela segunda vez, vimos S.a Em.a. comovido, comovendo também a nós todos, clero e povo. As lágrimas foram a última prova de amor de S.a Em.a. por nós e de nós por S.a Em.a. Bem-haja o eminente prelado que assim sabe cativar os corações.
Às nove e trinta da manhã, partiu S.a Em.a. desta freguesia, em direcção a Serro Ventoso, acompanhado do pároco e vário clero e de muito povo. Apesar do mau tempo, foi encantadora e entusiástica a despedida. Mais de duzentas pessoas levantando vivas calorosas e cantando o Hino de S.a Em.a. seguiam o carro que devagar rodava pela estrada que leva a Porto de Mós. S.a Em.a vendo o sacrifício deste povo e com medo de que viessem a molhar-se, proibiu-lhe que fosse a Porto de Mós que fica a cinco quilómetros, como aliás era vontade do mesmo povo.
Obedecendo, nem um só passo mais deu, mas triste e fiel à voz do amor, ajoelha e implora uma última bênção do prelado, levanta-lhe vivas, e até nos perdermos de vista, ficam aquelas duzentas pessoas fazendo estrugir no espaço, o hino.
E assim terminou nesta Freguesia a vista de S.a Em.a o sr. Cardeal Patriarca, D. José III, que nos deixou indeléveis recordações e profundas saudades. Em toda a Vigararia o Prelado tem sido sempre bem recebido, e uma nota de solenidade há, que ainda não foi referida, é que em todas as freguesias tem comparecido uma filarmónica, o que tem dado muito realce às recepções.”
Naquele vibrante adeus, de quem se despediria o Povo, do Cardeal-Patriarca ou do Santo que já se via no Padre Cruz?
Até à restauração da diocese de Leiria, em 1918, foi esta a última vez que a Freguesia recebeu a visita pastoral dum Bispo.