
Um grupo de amigos, já homens maduros, que na sua adolescência e juventude frequentaram o seminário e que há largas décadas não se viam, combinaram um encontro.
Tirando uma pequena minoria que subiu os degraus do altar, cada seguiu à sua vida. Constituíram família e enveredaram pelas mais diversas ocupações e ofícios.
Passaram décadas e estes velhos companheiros reuniram-se, e recordaram os tempos antigos, e as histórias engraçadas que cada se lembrava. Decidiram então em conjunto, escrever um livro.
Assim surgiu “Caminhos Trilhados”. O livro tem 18 autores, e um deles é do Alqueidão da Serra.
Manuel Amado Carvalho, natural do Alqueidão da Serra, entrou no Seminário em 1957 e saiu em 1961. Neste livro conta algumas peripécias passadas no seminário, e também as suas aventuras em criança, quando ainda estava com a família no Alqueidão da Serra.
Deu-lhe o titulo, “Sustos da minha infância”.

Depois de descrever algumas aventuras passadas no Alqueidão da Serra e também no tempo em que esteve no seminário, a sua narrativa termina assim:
“Agora, para terminar esta minha odisseia, sobra-me ainda inspiração para dar a conhecer mais alguns episódios que demonstram a liberdade selvagem da minha primeira infância, recordada com nostalgia, em nada comparável com as crianças de hoje, nomeadamente os meus adoráveis netos.
Cada um usufruía da possibilidade de se inventar e até de se exceder a si próprio, mobilizando os amigos mais próximos quer para os jogos de rua a que todos estávamos habituados, como o do pião, do berlinde, das covinhas ou do hidroavião, quer também para outras descobertas aventureiras!
Num dia de verão, lá estávamos, como previamente combinado, os sete ou oito reguilas de sempre, decididos a fazer um passeio de descobertas de alguns lugares que conhecíamos apenas por deles termos ouvido falar aos pais ou a outros mais velhos.
A rota tinha sido acordada dias antes em assembleia da tribo em que um, mais conhecedor dos trilhos, se elegera para guia.
A primeira etapa, depois de reunidos todos os participantes, teria inicio no alto da Carreirancha, em direção à Estrada Romana, nessa altura ainda não divulgada como tal. Não havia conhecimento histórico para que as pessoas soubessem que fora construída e utilizada para ligar o trajeto de Tomar à minas de ferro do Zambujal de Alqueidão da Serra, a Porto de Mós e ao litoral. Por isso, os vestígios eram quase invisíveis uma vez que, com o passar dos séculos, estava praticamente submersa com terra, detritos e folhagem.
A meta seguinte seria a passagem pelas Penas do Ninho do Corvo, para nos certificarmos da existência das Figueiras do Diabo. As penas do Ninho do Corvo são uns penhascos existentes entre dois montes e o planalto, formando um desnível abrupto inacessível ao comum dos mortais e onde crescem pequenas figueiras a que chamam as Figueiras do Diabo.
Segundo conta a lenda, alguém teria colhido folhas dessas figueiras, para fazer chá para cura de alguma maleita, tendo ido desta para melhor!
Chegados ao planalto, todos queriam sentir debaixo dos pés o som do vazio do subsolo. Todos batiam o pé no solo, como que numa dança de índios, para detetar onde o som era mais percetível. “Olha aqui” dizia o Bicú, “parece que estamos sobre a tampa de um poço”. O Merco, que ria para dentro, de boca fechada, dizia: “Aqui… aqui parece um bombo”. O Bilau, que vomitava palavrões grandes, apesar de ser o mais pequeno do grupo, falava mais alto do que qualquer outro: “Aqui, aqui é que parece que está tudo roto!.”
Eu era talvez o único que tinha ainda o nome parecido com o da pia batismal: Manel ou Maneljacinto, este ultimo uma conjugação com o nome do meu pai, que Deus o tenha! Bicú, Bilau, Merco, Zé Careca, Tabucha, Zé Pipa, Finura, Machaqueiro, etc., eram as alcunhas pelas quais os meus colegas eram conhecidos.
Sobre o Merco teria muito que contar. Poucos anos mais tarde, andava eu no Seminário, passou a ser conhecido por Sacôta. Segundo apurei, ele era o sacristão nessa altura, em substituição do seu irmão mais velho. Tanto um como outro já faleceram, mas atrevo-me a contar a seguinte história:
Como era habitual, os foguetes que sobravam das festas eram guardados numa dependência da Igreja Paroquial tendo ele, na qualidade de sacristão, acesso a essa arrecadação. Um belo dia, talvez no Carnaval, o Merco lembrou-se de ir aos foguetes e tirar-lhe as bombas para depois as rebentar.
Para seu grande azar, uma dessas bombas foi segurada tempo de mais na mão depois da ignição tendo, coitado, ficado sem todos os dedos da mão esquerda. A partir daí o Merco passou a ser conhecido como Sacôta, o mesmo que dizer, sacristão da mão côta.
Para fazerem ideia de como era o Sacôta, antes que mais lhes conte, ouçam esta: nesse tempo o pároco do Alqueidão da Serra era o Dr. Américo Ferreira, que tinha uma motorizada marca Seta com a qual se fazia transportar para os restantes lugares da paróquia. Certo dia a motorizada do padre ficou quase sem nenhuma gasolina. Não fora o conhecimento da técnica, dado que a motorizada tinha ainda uma pequena reserva para a qual era necessário rodar a torneirinha do depósito, o Sr. Padre teria tido que deslocar-se a pé até à bomba de gasolina, que distava cinco quilómetros. Pelo que se soube, o pestinha do Sacôta roubara a motorizada ao padre e divertira-se algumas horas até acabar a gasolina. Valeu-lhe somente um puxão de orelhas!
Mas o Sacôta tem mais! Ele próprio me contou que ia frequentemente à garrafa do vinho das celebrações. O vinho especialmente feito para esse fim pelo Sr. Carlos, com as melhores uvas moscatel, era guardado na sacristia, lugar onde o Sacôta não hesitava ir e vazar uns goles pela garganta a baixo! Em seguida, juntava um pouco de água, de modo a que se mantivesse na garrafa a quantidade necessária para as celebrações a que estava destinado.
Noutra ocasião foi o episódio do órgão de tubos. Existia na igreja um velho órgão de tubos muito antigo, que eu diria ser uma reliquia. O Sacôta lembrou-se então de produzir alguns sons no orgão. O fole do referido orgão, que era acionado por pedal, foi demasiado forçado, o que teve como consequencia a rotura do mesmo. Porém, aí fui eu quem pagou as favas! Creio que o Padre Américo se convenceu de que eu é que tinha sido o malandro infrator, obrigando-me a ir ao sapateiro comprar um pedaço de carneira e cola de contacto, para proceder à respetiva reparação. Conseguimos assim remediar a situação e o Sr. Padre pode continuar as celebrações dominicais com o seu rong-rong!
Voltemos então de novo ao nosso passeio das descobertas da natureza. No alto da serra havia dois moinhos de vento, um deles já em ruinas. O outro acabaria por ser destruído mais tarde. Não podíamos no entanto perder tempo a visitá-los por estarem um tanto ou quanto fora do percurso. A próxima etapa era a Carrapatosa, um maciço calcário nivelado por cima, embora com algumas fendas na pedra, donde se avistava perfeitamente a torre da Basílica de Fátima. Poderia dizer-se que era uma autentica praia seca onde dava para apanhar banhos de sol em dias de verão. Dois ou três anos mais tarde houve, no acesso ao referido maciço, em plena serra, um encontro da juventude das freguesias de Alqueidão da Serra e São Mamede com missa campal seguida de outras atividades como teatro e cantigas.
O nosso ultimo destino era o Poço Salgueiro, na Cova do Chão Falcão. O Poço Salgueiro é um buraco onde existe uma pequena árvore centenária a que chamam salgueiro e o poço, por obra de Deus, mantem sempre água quer seja inverno ou verão.
Estava assim concluído o percurso previsto, faltava ainda o regresso. Como diz o povo, para baixo todos os santos ajudam, e o regresso foi um vê se te avias! Em menos de meia hora estávamos todos disponíveis para mais uma aventura.
Assim, como tínhamos tempo suficiente e tínhamos deixado sem visita os moinhos velhos, resolvemos ir ainda ao moinho da Cabeça,
Chegados à Cabeça, com uma vista fabulosa sobre Porto de Mós e arredores, apostamos, a nada, quem teria coragem de dar uma volta completa num dos braços do moinho, agarrado com unhas e dentes e também com as pernas em gancho. Não houve nenhum candidato. Fui eu então o grande aventureiro que, sem medir o perigo e as possíveis consequências, elevado à força de braços de todos os do grupo a quase quinze metros de altura me fiz à volta de 360º! Imaginem assim o Carvalhico, nome pelo qual fui conhecido no seminário, a quinze metros de altura, de cabeça para baixo, agarrado ao braço do moinho de vento! Quando depois, com o balanço, o engenho ainda subiu a um quarto de volta até parar, que vontade não tive para agradecer a Deus por me ter protegido.
FOI SÓ MAIS UM PEQUENO SUSTO.”
Manuel Amado Carvalho
do livro “Caminhos Trilhados”